iaquafi. Saramthali, Rasuwa, Nepal—28Fev2024
SIM, SARAMTHALI
Sim, Saramthali!: eu sentirei saudades, dos sucessos e das dificuldades.
Da moradia simplíssima, mas que não diminuiu em nada meu entusiasmo. Pelo contrário, deu-me mais motivação pra dar o meu melhor, sonhando ficar entre os melhores cafés do mundo e colocar o Nepal no mapa da cafeicultura agroecológica e especial. Mais do que um sonho, uma meta.
No quarto, que também serviu de tulha, ironicamente, lado a lado, dormindo e sonhando juntos, literalmente, criador e criatura.
Há metáforas que surgem dentro do caminho da meta. Semear, colher, secar e ser poeta.
Um dos meus sonhos era —‘era’, pois, estando aqui, termino de realizá-lo— trabalhar em todos os continentes onde se produz café.
Tendo trabalhado no Brasil, América se cumpriu. Dez anos divididos entre Tanzânia, Uganda e Etiópia: África foi meu ópio. E, atualmente, Nepal: Ásia, que me dá asas —foi me dado cem por cento de autonomia e liberdade pra fazer o que eu quisesse com esses doces cafés.
Agora o objetivo é ficar num lugar e figurar entre os melhores cafés do mundo. E já pensou o topo do mundo no topo do mundo!? Eu topei o desafio —nunca aventura, pra mim— e vim.
Cafés colhidos, processados e secos, é hora de ir para a capital beneficiar os grãos. Foram algumas toneladas de café fresco, divididas em três estágios de maturação e sete diferentes técnicas de processamento. Cheguei a ter quinze tipos distintos de café secando ao mesmo tempo.
Na colheita, lavagem e descascamento, eu passava as instruções. As fermentações eu mesmo controlava. E na secagem fui —feliz, realizado e ativo— o peão: o terreiro todo em minhas mãos, que se enegreceram. ‘Vesti a camisa’ —as dez camisetas iguais de mangas longas— e o chapéu —por isso, só as mãos queimaram, mas não arderam— e me fiz terreireiro, com orgulho e trabalho árduo. O café na palma das mãos e o lápis na ponta dos dedos. Tudo minimamente registrado, anotado, documentado. Cada lote com seu mapa, antes de entrar naquele almejado atlas.
Dei meu máximo. Como ninguém fala inglês aqui, achei mais fácil fazer do que falar. E o fiz com vontade de fazer.
Que paixão de ofício!: amo muito tudo isso.
E amei!
Sei que é batido dizer —e foi um batidão: quarenta e cinco dias intensos, um dia de folga por causa de chuva e quatro banhos apenas—, mas a única palavra que resume o que quero expressar agora à aldeia de Saramthali é “gratidão”.
Gratidão, primeiro, ao que está acima de nós.
Ao sol, que não falhou. Exceto aquele diazinho de chuva, que serviu pra dar descanso.
À lua, que se fez majestosa e deslumbrante, sempre exuberante, às vezes, extravagante, todos os dias ao abrir o terreiro, iluminando-o de tabela. Lembre-se: a luz dela não é dela, o que não a faz menos bela. Assim somos todos.
Agradecendo aos dois, agradeço ao céu e aos seus... e aos meus, pelas preces.
E fiz tudo sem pressa, no meu passo, do meu melhor jeito, buscando estar cada vez mais perto do inatingível perfeito, afinal sou virginiano.
Como um bom mau paraisopolitano, eu só reclamava do vento. Não exatamente do vento em si, mas da direção e da hora em que ele soprava diariamente: contra a lona no horário de cobrir o café sozinho. Mas eu fazia por etapas usando pedras. Nas bordas do terreiro tinham pedras. Logo, tinham pedras no meio do terreiro.
Gratidão pelos jantares diários sentado sobre a palha no chão de terra batida. Todo dia, arroz, lentilha, batata, uma brassicácea e leite de búfala.
Gratidão pela única torneira, que serve a tudo e nos serve, nos brinda, com uma deliciosa e pura água de mina alcalina.
Gratidão pelo banheiro, mero buraco no chão, exercício de mira sem ver a arma e sem ver o alvo. Cócoras e concentração.
Gratidão pela cama dura encostada na parede de barro, de rústico, mas fino acabamento, cujas únicas rachaduras eram vizinhas de meu travesseiro, me mostrando as entranhas e ranhuras do mundo, que tanto prezo conhecer e vivenciar.
Se ensinei, agradeço pelo que de vida aprendi.
Esse “tchau, Saramthali” não é um “adeus”; é um “muitíssimo obrigado” e um “até breve”, pois ainda temos lutas, labutas e, principalmente, amores à frente. E, se Deus quiser, louros também, pelos sabores dos nossos suores —cerejas maduras, que crescem nas axilas florais, que não são azedas sob as sombras do cafezal e sob o sol ameno no terreiro—, apaixonando, ainda mais, frutos e labores.
Imagine os frutos de um arbusto apaixonados pelas mãos que, apaixonadamente, o trabalham. Tem vez que sou o fruto. Tem vez que sou a mão.
Gratidão!: me encontrei sendo os dois na mesma hora. É isso que chamam de “lavoura”? Lá me vou pra debulha, tendo passado por ela.
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[foto]
quando: 26Fev2024
onde: Nepal, Rasuwa, Saramthali
por: Andalaquim