Textos


iaquafi. Saramthali, Rasuwa, Nepal—25Jan2024

TERROIR-TERREIRO

 

“Café é detalhe.” era uma frase que meu pai sempre dizia, a ponto de ser o título de uma reportagem sobre o trabalho dele na Revista Espresso e ser tatuada em minha prima Júlia. Vou tatuá-la também. Ela, a caçula das primas Almeida, e eu, o caçula dos meninos, razão que me deu o codinome Kancho Almeida, já na primeira reunião, aqui no Nepal, com o senhor Santa. Ele quis saber, dos cinco filhos de Paulinho e Leninha, em qual posição eu estava. “Sou o mais novo. E, dos netos homens de Dona Sebastiana, também sou o caçula.” “Okay, vou chamá-lo de Kancho.”

 

Ontem, conversando com minha mãe —sempre em ligações que se conectam e caem, se conectam e caem, se conectam e caem—, eu lhe disse que me disseram que aqui não chove no inverno. Maravilha!... pra secar café. Diferente de Uganda, que chove quase todo dia nas duas estações anuais de colheita. Mesmo assim, guiei os times na produção do melhor Arábica e do melhor Robusta daquele país. Pra se ter uma noção, nosso Robusta foi provado em Dubai e, lá nas Arábias, acharam que ele era Arábica. Acho que o terroir explica isso, uma vez que o Robusta é nativo de Uganda. Santo de fora de casa faz milagre com santo de dentro do lar. Uganda: oh lugar!..., até hoje o mais difícil, em todos os aspectos, de viver e trabalhar. Foram quatro anos de luta cotidiana, que renderam, no fundo e no fruto, cicatrizes.

 

Também ontem eu disse que cubro, diariamente, todos os lotes de café no terreiro, independentemente do estágio de secagem, pois toda noite a neblina aqui é como chuva. Serração que começa a se formar a partir das dezesseis horas, quando todos os cafés já estão cobertos.

 

“Café é detalhe.”

 

Eu dissera que a primeira medida tomada por mim na lavoura —escritório número um— foi separar, em lotes distintos, o café amarelo do vermelho. Já no terreiro —escritório número três—, foi cobrir, na hora e maneira certas, os cafés em secagem. “Por que estavam erradas, Kancho?” Eram quatro mesas de secagem, cada qual com seus arcos de bambu sobre elas, que recebiam uma lona ao final da tarde. Formava-se uma cabana, mas com as extremidades abertas, a partir de onde se via o café não enleirado. Pra eles, tudo bem: eles vinham abrir o terreiro às onze da manhã, quando já não havia mais água sobre os grãos. Segui o método deles no primeiro fim de tarde, pra observar a dinâmica. Mas, diferentemente deles, fui abrir o terreiro às sete do dia seguinte: o café inteira e densamente molhado de orvalho. A quinta mesa já construímos sem os arcos. Nesse caso, desnecessários.

 

Assumi o terreiro em tudo, nos seus mínimos detalhes. O café não era rodado. Mas não por que não tem rodo. Era por falta de cuidado mesmo. Mas sem culpar pessoa alguma. Ninguém os guiava. A partir do segundo dia, tornei-me o terreireiro. Café rodado com as mãos a cada 40 minutos. Meu pai também era famoso por dizer “Café bom tem calo na barriga do peão.”, numa metáfora de que o café precisa ser constantemente revirado. No caso, o calo na barriga é por causa do cabo do rodo, onde o apoiamos mexendo café num terreiro ao nível do chão. Aqui, o peão sou eu, o rodo é a mão e os calos são cicatrizes felizes.

 

Outra máxima marcante na minha carreira, como canto de pássaro do Paulinho-Canarinho: “Ouça o camponês. Ouvidos ao produtor.”. Essa acho que foi exclusiva pra mim, de um pai amoroso e preocupado, com anos de experiência de extensão rural na Emater de Minas Gerais —o Paulinho da Emater de Pedralva—, ao filho recém-formado e a minutos de embarcar para ser agrônomo de comunidades rurais remotas na Tanzânia em 2010.

 

Café rodado o dia inteiro, é hora de cobrir do jeito correto: enleiro o café no meio da mesa, dobro o sombrite sobre a leira, ponho uma lona por cima, sobre cujas bordas ponho pesos para segurá-la.

 

Ontem, choveu muito à noite. Dormi o sono dos anjos, sem preocupação alguma se o café estava ou não se molhando, confiando no meu taco, nas minhas palmas e nas minhas lonas.

Hoje de manhã, às seis e meia, tinham pocinhas de água sobre os plásticos, mas descubro, ao descobrir o café, que não há, sequer, um grão molhado. Molho-me de orgulho e amor próprios, com a energia boa desses alpes e com tanta gente me incentivando e rezando por mim. Gratidão e amém!

 

Pós-processamento, um grão que permito molhar só no filtro, com um sentimento feliz da xícara.

 

 

 

 

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[foto]

quando: 24Jan2024

onde: Nepal, Rasuwa, Saramthali

por: Andalaquim 

Andalaquim
Enviado por Andalaquim em 19/06/2024
Alterado em 24/06/2024
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