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áfricarrauá

SERÁ QUE EU FUI ALFAIATE?

 

Tanzânia. Maio de 2010

 

Dez anos antes de eu estar no continente africano pela primeira vez —dessa vez—, eu verbalizei que eu queria trabalhar nele. Era domingo. Minha professora de Crisma era a jovem Irmã Cláudia. Porém, ela estava de mudança do Colégio Santa Ângela de Paraisópolis. Fui até o colégio me despedir dela, afinal ela tinha sido, até então, a única pessoa que me fizera gostar de algumas coisas do Catolicismo. Com a saída da Irmã, tive mais duas professoras de Crisma. Primeiro foi a Dona Salete e, depois, passei a ter aulas com a Dona Zenaide. E ambas têm um lugar especial no altar dos meus sentimentos, pois, com as lições desse sacramento, plantaram sementes cristãs no coração desse quase ateu-quase crente.

 

Era domingo. Eu fui me despedir da Irmã Cláudia. Sentamos na banqueta de cimento vizinha ao topo do escorregador. Conversávamos, e lembro certinho como e quando ela perguntou, com uma observação: “Você já está crescido. Mas o protocolo manda perguntar assim: ‘O que você quer ser quando crescer?’.”. Lembro como se fosse hoje: “Quero ser engenheiro agrônomo, como meu pai, e estudar na mesma escola em que ele estudou.”. E ela continuou, e lembro até do verbo: “desejar” ao invés de “querer”: “E onde você deseja trabalhar?”. Respondi no exato instante seguinte, que foi quase no mesmo momento da pergunta: “Na África.”. Nunca mais comentei isso com ninguém. Nunca! Ninguém!

 

Minha vida seguiu. Continuei meus estudos. E eis que em 2002, na primeira metade do terceiro ano do ensino médio, passei como ‘treineiro’ na primeira chamada do vestibular de meio de ano da Universidade Federal de Lavras para o curso de Agronomia, mesma escola onde meu pai estudara. O primeiro terço da profecia estaria cumprido se eu pudesse ingressar no curso. Mas, sem concluir o ensino médio, nada feito. Quer dizer, algo estava feito: essa experiência servira para mostrar que eu estava certinho no caminho. Mas não podia relaxar. E não relaxei. Tanto é que: resultado da primeira chamada do vestibular de fim de ano: aprovado novamente. O primeiro terço da profecia —entrar na faculdade— estava, então, cumprido.

 

Comecei a faculdade. Tranquei o segundo período porque queria fazer Letras. Não fiz. Voltei pra faculdade de Agronomia no semestre seguinte. Em 2007, tranquei novamente para fazer curso técnico de locução de rádio. Fiz. Nunca virei locutor. Voltei pra faculdade de Agronomia. E no início de 2009, quando eu queria parar o curso novamente, comecei a ficar depressivo e ter pesadelos. Fui, então, ao Centro Espírita Augusto Silva, que eu freqüentava por um tempo e parava por outro, freqüentava e parava e, assim, eu ia e não ia. Pedi pelo atendimento fraterno. Chovia muito. A pessoa escalada para os atendimentos daquela noite não conseguira chegar. A assistente, então, me disse: “Se você esperar o Seu Atanael terminar o que ele está fazendo, ele poderá te atender.”. A minha decisão foi a mais fácil do mundo: esperar, afinal, ser atendido pelo Seu Atanael seria uma bênção. Ao explicar o que eu estava sentindo e passando, eu me esqueci completamente de mencionar que queria, mais uma vez, trancar a faculdade. Limitei-me a dizer que estava deprimido e tendo pesadelos. Ele posicionou a palma de uma das mãos a cinco centímetros da minha testa. Senti a testa esquentar, esquentar, esquentar cada vez mais. E ele me disse: “Termine. Tem uma missão que depende de você terminar.”. Preciso dizer que arrepiei? Pescoço, nuca e braços. Até tremi.

 

Com essa luz no caminho, foquei em terminar a faculdade. Enraizado na mensagem do Seu Atanael, concluí mais um semestre. E em outubro de 2009, já no último período da graduação, fui a Santo Antônio do Amparo, acompanhar meu pai e minha mãe num encontro com David Griswold, fundador e diretor da Sustainable Harvest Specialty Coffee Importers. Quando meu pai venceu o concurso Cup of Excellence Brazil em 2001 —maior nota oficial, mundial e histórica até hoje: 97,53 pontos—, David e seu parceiro Oscar foram os primeiros estrangeiros a desembarcarem na nossa fazenda. Começou ali uma parceria maior do que a relação comercial entre produtor e comprador. Por anos seguidos, a Sustainable Harvest levou meu pai para ser palestrante no evento Let’s Talk Coffee, que acontecia —não sei se ainda acontece— anualmente em um país da América do Sul ou Central. Expliquei ao David que eu concluiria a faculdade de Agronomia em breve e, sem cerimônia, pedi a ele uma oportunidade de emprego. Ele respondeu na mesma velocidade que, dez anos atrás, eu respondera à Irmã Cláudia que eu desejaria trabalhar na África. “Quer trabalhar na África, nos nossos escritórios da Tanzânia?” Dessa vez a minha resposta não foi rápida. Eu senti a boca seca. Engoli a saliva que não tinha. “Seca”, “saliva”. Tudo com S. E eu só pensei numa sílaba: “Sim!”. Na verdade, foi “Yes!”. Apertamos as mãos e ficou combinado: eu iria para a Tanzânia.

 

Vou pular a parte em que eu quase não consegui me formar por causa das notas da disciplina de Genética para ir direto à parte da genealogia. 23 de maio de 2010. Desembarco na Tanzânia. Chego ao hotel. A reserva não estava no meu nome, mas sim no nome da empresa. Não sabiam meu nome. Meu quarto é o número 10. Apenas um quadro na parede. Nele a imagem de uma antiga rua. E nessa rua, uma alfaiataria em primeiro plano, que leva o nome do alfaiate: Almeida.

 

 

 

 

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[foto]

quando: 23Mai2010

onde: Tanzânia, Kilimanjaro, Moshi

por: Andalaquim

Andalaquim
Enviado por Andalaquim em 20/08/2022
Alterado em 10/10/2023
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