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áfricarrauá

SEDE COMO BICHO

 

Uganda. Fevereiro de 2019

 

A criança, que não tinha mais do que três anos de idade, pegava água da poça na beira da estrada de terra. Chovera por uns dez minutos. Ela enchia uma vasilha quebrada. E, à medida que o fazia, a água completamente barrenta se movia e ficava ainda mais marrom.

 

Minha ingênua ilusão me levou a imaginar algo lúdico: ela brincaria de construir com barro. Mas, diante de tanta pobreza, a construção ilusória de barro logo ruiu, dando espaço a algo mais contextualmente tangível. Talvez a água, após tratada, serviria para consumo num banho, saciar algum rebanho de um único animal, cozinhar, limpar a casa. Mas não. De repente, a realidade se escancarou numa ferida fedida e purulenta. Vi a criança beber aquela água em goles sedentos como bicho. Nesse momento, vi a miséria saciar a sua sede com a água fresca desse mundo imundo.

 

Testemunhei essa cena logo na minha primeira semana —início da segunda quinzena de fevereiro de 2019— na remota e fronteiriça zona rural do sudoeste ugandense.

 

Eu pensei que já tinha vacina suficiente para suportar ver pobreza. Afinal, já tinha passado quatro anos em quatro diferentes regiões da Tanzânia e, também, uma semana num remoto distrito etíope e outra semana ao lado de um campo de refugiados em Burundi. Mas não. A cicatriz se abriu e engoli seco a sede alheia.

 

 

 

 

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[foto]

quando: 16Fev2019

onde: Uganda, Kanungu

por: Andalaquim

Andalaquim
Enviado por Andalaquim em 17/08/2022
Alterado em 02/11/2023
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