aferykawa-gan. Buhoma, Kanungu, Uganda—27Jun2020
MISTÉRIOS E METÂMEROS
O céu ter cor e ser espaço.
A ave voar.
A águia, austera e atraente, rapinar no vôo.
A água não ter cor, e o sangue a ter.
A água não ter odor, e o suor o ter.
‘Cor’ ser substantivo feminino.
‘Odor’ ser substantivo masculino.
Tudo ter sabor, menos a água, princípio de tudo.
A água ter três átomos, três pontos e três traços.
As águas correrem e fazerem coro.
Ser sem cor ser visível.
Depender de algo invisível pra sobreviver.
A porção de água, a massa de ar, a partícula de Deus.
Existir flor com perfume e flor com fedor.
A minhoca viver dentro da terra.
O verme viver dentro da gente.
A gente viver dentro do útero
e não ser chamado de verme da mulher.
A maternidade.
O solo ser sustento físico, lar biológico e alimento químico
da árvore,
sustentável e simultaneamente.
A paternidade, a maternidade e a fraternidade.
A unha,
meio mole, meio dura,
crescer de dentro pra fora sem causar cócegas.
A temperatura diferente dos testículos.
A seiva e o sangue circularem
num rio fechado privado de cada indivíduo.
A placenta ser tão importante e descartável.
Formar-se a placenta de novo.
A gestação.
A formação, atividade e ruptura
do umbigo.
A ligação, funcionamento e desligamento
da respiração.
A vida estar num intervalo entre buracos.
Santos e astros não caberem no mesmo céu... infinito,
susceptíveis de caírem num orifício.
Tudo isso me intriga.
Mas nada me é tão instigante
quanto quando vejo um inseto
no alto de um cômodo,
na superfície plana e, aos meus olhos, lisa,
paralelamente ao chão,
andando ou parado.
Eu paro e o admiro.
Me incita e me conquista
o inseto em seu firmamento.
‘Firmamento’ num misto de se firmar e de lugar.
Não sei as regras que regem os detalhes dessa dinâmica.
Observo o fenômeno pensando que,
de tão extraordinário diante da minha ignorância,
soa até insensato o ato do inseto
estar em pé de cabeça pra baixo no teto e não cair de lá.
Por ser insólito aos meus olhos leigos,
me encanto e me entrego ao ritual de olhar com atenção
a interação
entre as rugas do revestimento, que não vejo,
certas cerdas, que não vejo,
e secretas secreções, que não vejo,
mesmo fixando os olhos.
Olhos simples
para algo interdisciplinar,
que requer olhos compostos,
como os olhos que olho
pra baixo
pro solo.
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[foto]
quando: 27Jun2020
onde: Uganda, Kanungu, Buhoma
por: Andalaquim