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MISTÉRIOS E METÂMEROS

 

O céu ter cor e ser espaço.

 

A ave voar.

A águia, austera e atraente, rapinar no vôo.

 

A água não ter cor, e o sangue a ter.

A água não ter odor, e o suor o ter.

‘Cor’ ser substantivo feminino.

‘Odor’ ser substantivo masculino.

Tudo ter sabor, menos a água, princípio de tudo.

A água ter três átomos, três pontos e três traços.

As águas correrem e fazerem coro.

 

Ser sem cor ser visível.

Depender de algo invisível pra sobreviver.

A porção de água, a massa de ar, a partícula de Deus. 

 

Existir flor com perfume e flor com fedor.  

 

A minhoca viver dentro da terra.

O verme viver dentro da gente.

A gente viver dentro do útero

e não ser chamado de verme da mulher.

A maternidade.

 

O solo ser sustento físico, lar biológico e alimento químico

da árvore,

sustentável e simultaneamente.

A paternidade, a maternidade e a fraternidade.

 

A unha,

meio mole, meio dura,

crescer de dentro pra fora sem causar cócegas. 

 

A temperatura diferente dos testículos.

 

A seiva e o sangue circularem

num rio fechado privado de cada indivíduo.

 

A placenta ser tão importante e descartável.

Formar-se a placenta de novo.

A gestação.

 

A formação, atividade e ruptura

do umbigo.

 

A ligação, funcionamento e desligamento

da respiração.

 

A vida estar num intervalo entre buracos.

 

Santos e astros não caberem no mesmo céu... infinito,

susceptíveis de caírem num orifício.

 

Tudo isso me intriga.

 

Mas nada me é tão instigante

quanto quando vejo um inseto

no alto de um cômodo,

na superfície plana e, aos meus olhos, lisa,

paralelamente ao chão,

andando ou parado.

Eu paro e o admiro.

Me incita e me conquista

o inseto em seu firmamento.

‘Firmamento’ num misto de se firmar e de lugar.

Não sei as regras que regem os detalhes dessa dinâmica.

Observo o fenômeno pensando que,

de tão extraordinário diante da minha ignorância,

soa até insensato o ato do inseto

estar em pé de cabeça pra baixo no teto e não cair de lá.

Por ser insólito aos meus olhos leigos,

me encanto e me entrego ao ritual de olhar com atenção

a interação

entre as rugas do revestimento, que não vejo,

certas cerdas, que não vejo,

e secretas secreções, que não vejo,

mesmo fixando os olhos.

Olhos simples

para algo interdisciplinar,

que requer olhos compostos,

como os olhos que olho

pra baixo

pro solo.

 

 

 

 

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[foto]

quando: 27Jun2020

onde: Uganda, Kanungu, Buhoma

por: Andalaquim

Andalaquim
Enviado por Andalaquim em 04/07/2020
Alterado em 30/09/2022
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